quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Entre nós e nas linhas da história




O Código Penal, que atualmente vigora 
em nosso país, data de 1940 e é o 
terceiro existente no Brasil. Inicialmente, 
ele previa duas condições para o aborto         legal. A partir de 2012, com a resolução       do Superior Tribunal Federal (STF), uma 
terceira condição ficou prevista. 
Atualmente o aborto é permitido por 
lei em: casos de estupro, 
risco de morte para a gestante e anencefalia.

O caso recente de Janira nos traz diversos questionamentos. Mesmo na ilegalidade diversas mulheres recorrem a esse procedimento, são experiência, relatos que marcam diversas vidas. E quantas famílias não tem histórias parecidas, mesmo que veladas? São diversas arvores genealógicas que poderiam ser atualizadas se as experiências viessem a tona.
Pesquisa da UNB revelou que as mulheres que abortam no Brasil somam cerca de 5 milhões. Dentre o total de mulheres que declararam na pesquisa já terem feito pelo menos um aborto, 64% são casadas e 81% são mães. “A mulher que aborta é uma de nós. Ela é a sua irmã, ela é a sua vizinha, ela é a sua filha ou a sua mãe”, define Débora Diniz. A classe social não interfere na decisão. Do total de mulheres que abortaram, 23% ganham até um salário mínimo, 31% de um a dois, 35% de dois a cinco e 11% recebem mais de cinco. “Pobres e ricas, todas abortam”, afirma a professora. A maioria é casada, tem filhos e religião. Mais de 50% delas têm entre 30 e 39 anos.
E se fossemos mais fundo, na história? Abaixo copio um trecho do artigo “O aborto: um resgate histórico e outros dados”, que nos dá uma perspectiva histórica e social a sobre o tema:
Ainda que no Brasil, o aborto, essa prática clandestina por excelência, carregue a marca da reprovação, certamente não terá sido assim no decorrer da história da humanidade. Sabe-se que desde os povos da antiguidade este era difundido entre a maioria das culturas pesquisadas. O imperador chinês Shen Nung cita em texto médico escrito entre 2737 e 2696 a.C. a receita de um abortífero oral, provavelmente contendo mercúrio.
Na antiga Grécia, o aborto era preconizado por Aristóteles como método eficaz para limitar os nascimentos e manter estáveis as populações das cidades gregas. Por sua vez, Platão opinava que o aborto deveria ser obrigatório, por motivos eugênicos, para as mulheres com mais de 40 anos e para preservar a pureza da raça dos guerreiros.
Sócrates aconselhava às porteiras, por sinal profissão de sua mãe, que facilitassem o aborto às mulheres que assim o desejassem. Já Hipócrates, em seu juramento, assumiu o compromisso de não aplicar pressário em mulheres para provocar abortou.
Entre os Gauleses, o aborto era considerado um direito natural do pai, que era o chefe incontestável da família, com livre arbítrio sobre a vida ou a morte de seus filhos, nascidos ou não nascidos. 10 O mesmo ocorria em Roma, onde o aborto era uma prática comum, embora interpretada sob diferentes ópticas, dependendo da época. Quando a natalidade era alta, como nos primeiros tempos da República, ela era bem tolerada. Com o declínio da taxa de natalidade a partir do Império, a legislação tornou-se extremamente severa, caracterizando o aborto provocado como delito contra a segurança do Estado.


(…) Com o advento do Cristianismo, entretanto, o aborto passou a ser definitivamente condenado, com base no mandamento “Não Matarás”. Essa posição é mantida até hoje pela Igreja Católica mas, ao contrário do que se possa pensar, ela não foi tão uniforme ao longo dos anos. Interesses políticos e econômicos contribuíram para que isso acontecesse.
São Tomás de Aquino, com sua tese da animação tardia do feto, contribuiu para que a posição da Igreja com relação à questão fosse mais benévola do que nos dias de hoje. (…) Alguns acontecimentos históricos, no início deste século, ocasionaram certas modificações importantes nas legislações que regiam a questão do aborto e são explicitadoras dessas diferentes ordens de motivos que fundamentam concepções e políticas a respeito.

Com a Resolução de 1917, na União Soviética, o aborto deixou de ser considerado um crime naquele país, tornando-se um direito da mulher a partir de decreto de 1920. Processo inverso aconteceu em alguns países da Europa Ocidental, sobretudo aqueles que sofreram grandes baixas durante a Primeira Guerra Mundial, que optaram por uma política natalista, com o endurecimento na legislação do aborto.
De acordo com Joana Maria Pedro em “A descriminalização do aborto: estranhas relações com lutas mais antigas” a prática do aborto esteve presente na vida de muitas famílias, até a criação do estado moderno que colocou como centro de suas políticas o controle da população, e como consequência, o controle da natalidade e dos corpos:
Práticas anticonceptivas e abortivas são antigas. Fazem parte da tradição. Foram, através do tempo, transmitidas, entre gerações, por diferentes povos. Faziam parte do conhecimento que a mulher recém-casada recebia das amigas, parentas e vizinhas. Faziam parte, também, da iniciação sexual dos homens, em algumas culturas. Um “marido cuidadoso” era o elogio que uma esposa faria, ao esposo que sabia como fazer corretamente um “coito interrompido”.
A prática do aborto, também transmitida entre mulheres, geralmente as casadas e já com alguns filhos, era, por muitos, considerada como legítima forma de controle da família, para impedir que mais filhos viessem comprometer a sobrevivência dos já existentes. Enquanto o feto não se movesse no ventre, não seria uma criança; portanto não se faria um aborto e, sim, usar-se-ia algum estratagema para fazer a menstruação regularizar-se.           
Convém destacar que, por muito tempo, as decisões contraceptivas
foram tomadas de forma privada, ou pela família, ou pelo pai, ou pelo casal, ou individualmente pelas mulheres, muitas vezes com a cumplicidade de outras. A interferência do Estado fez-se, no máximo, de forma punitiva, muitas vezes por imposição da Igreja Católica, como no caso da perseguição às mulheres acusadas de infanticídio e de práticas abortivas. Foi a partir da metade do século XVIII que a problemática da população substituiu a da família, como modelo de governo. A família, no novo contexto, tornou-se “instrumento privilegiado para o governo da população”. A população tornar-se-á, no novo modelo de governo que substituiu o da soberania, o grande objetivo. A questão era “melhorar a sorte da população, aumentar sua riqueza, sua duração de vida, sua saúde, etc.” Em nome disso, foram criadas leis punitivas e políticas públicas que visavam, ora expandir, ora reduzir a população
Selecionei esses trechos como ponto de partida, os textos completos são muitos mais aprofundados. Mas essa pequena seleção já mostra como este tema é alvo da desinformação. Na verdade, ele é um tabu. Naturalizamos que nossos valores são eternos. Como se houvesse uma homogeneidade no tempo e no espaço. Mas até a Igreja Católica, já teve diferentes visões sobre o assunto, influenciada pelas ideias de São Tomas de Aquino e pelo contexto histórico.
Referências
SCHOR, N.; , A. T. O Aborto: Um Resgate Histórico e Outros Dados. Rev.
Bras. Cresc. Dás. Hum., São Paulo, IV(2), 1994.
Revista do Mestrado de História / Mestrado em História, Universidade Severino
Sombra – v.1, (1998) – Vassouras,1998

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